Um director à beira de um ataque de nervos
O Presidente do STJ na abertura do Colóquio de Direito Penal e Processo Penal
"Retomamos, neste fim de Primavera, a sequência periódica de coloquiar sobre temas relevantes da vida judiciária portuguesa.
Desta vez, a temática escolhida não poderia ser mais chamativa: de um lado a coerência na aplicação das penas como esteio incontornável da igualdade dos cidadãos e da segurança e o papel que, nisso, cabe à jurisprudência deste Supremo Tribunal; do outro lado, os modelos do processo penal entre o inquisitório e o acusatório e/ou, no mínimo, a chancela jurisdicional do juiz na comprovação de um arquivamento que, até aí, nenhum indício jurisdicional comporta.
Mas se a temática é por si aliciante, quem sobre ela se vai debruçar traz-nos não só o conhecimento teórico como também o saber de experiência feito que é garantia antecipada da qualidade do colóquio que o Supremo organizou.
Daí que nada reste senão agradecer, desde já, a todos os que se disponibilizaram de imediato para participar nesta iniciativa da nossa Casa; iniciativa cujo sucesso se deverá exclusivamente a eles porque a qualidade do evento será a consequência directa da qualidade de quem hoje vai intervir.
Em condições normais ficaria tão - só por aqui e por sequenciais palavras de agradecimento.
Mas o editorial do "Público" de 27 de Maio da autoria do seu director (por acaso no dia em que regressávamos de Berlim onde foramos à Academia Germânica para a formação contínua dos juízes alemães explicar o modelo português de estruturação da independência do Judiciário que eles, tal como os belgas, pretendem conhecer em virtude do seu vanguardismo), tal editorial, dizia, impõe-nos obviamente que digamos algo mais.
De há meses para cá, parte da comunicação social iniciou um pressing simultâneo sobre os tribunais no sentido de os descredibilizar, nomeadamente quanto à sua eficácia, ao arrepio, aliás, do que expressamente sugerem os relatórios recentes do Conselho da Europa; e tal pressing comunicacional (de que o editorial do "Público" é o exemplo mais próximo) é um efeito directo da mudança de atitude dos cidadãos portugueses na defesa dos seus direitos de personalidade violados frequentemente pela imprensa.
Na verdade, décadas a fio, assistimos a que gente conhecida ou gente anónima, espezinhada comunicacionalmente no fundo da sua identidade, demandasse criminalmente o infractor.
Enquanto na Bélgica (com a mesma população que nós), em 1975, já ninguém pedia contas criminalmente por violações da imprensa, em Portugal foi-se seguindo o caminho romântico, canhestro e espúrio da limpeza pessoal como se de um crime de sangue se tratasse com efeitos finais inócuos em termos de afectação patrimonial.
A nossa entrada na União Europeia mudou muita coisa e o tempo fez o resto; e com isso os portugueses aprenderam que os seus direitos de personalidade, quando violados, só se devem defender indemnizatoriamente com efeitos reparadores na esfera jurídica do violador que os sente patrimonialmente na pele.
Se a lenta mudança de atitude do cidadão português iniciou este processo, a mudança de patamares indemnizatórios praticados nos nossos tribunais completou o resto como avatar previsível de uniformização comunitária.
A comunicação social vive, hoje, um tempo conturbado de tempestades anunciadas, principalmente ao nível da imprensa escrita.
Com uma concorrência intensa que leva os seus agentes a um corporativismo para o exterior e a uma guerrilha surda no interior, o aparecimento dos gratuitos predadores, uma crise estrutural rastejante, a necessidade do espectáculo permanente para processar lucros, a diminuição de qualidade dos seus agentes como efeito directo do trabalho precário, o desaparecimento das velhas redacções depositarias de velhos princípios que estruturavam a ética que, agora, ninguém controla (veja-se a confissão de João Cândido da Silva, no "Público" de 14/8/04 sobre as gravações ilícitas das conversas com as fontes sem autorização, como se de um fait divers se tratasse), o surgimento da internet que dispensa aos consumidores a intermediação jornalística, com tudo isto junto os novos conceitos indemnizatórios dos tribunais são o cabo das tormentas para jornais nos limites do equilibrismo orçamental.
Nos Estados Unidos a ética jornalística (muito acima da nossa) foi-se formando a par dos conceitos jurídicos que os tribunais elaboraram na defesa do bom nome dos cidadãos e da contenção que tiveram que impor a si mesmo por efeito das indemnizações punitivas.
E, nisso, a advocacia teve um papel fundador insubstituível que, em Portugal, virá um dia a ter necessariamente; porque com a permissão legal da quota litis, a advocacia americana, por força da solidariedade no lucro que a indemnização punitiva permite, funcionou como o travão preventivo que levou a imprensa daquele país a perceber que as violações dolosas e repetidas têm um preço que não vale a pena cobrar.
Entre nós, foi a condenação do "Público" pelo S.T.J na acção indemnizatória que o Sporting Club de Portugal lhe moveu, que funcionou como o toque a rebate de todo o jornalismo português.
O que então se escreveu, numa campanha a uma só voz, manipulando factos que não estavam na decisão, omitindo outros que lá estavam, foi o começo deste tempo novo por parte de quem percebeu que os conceitos comunitários também vão chegando a Portugal; campanha essa tão sem jeito que o escritor e jornalista Manuel António Pina a denunciou, em 17/04/2007, no Jornal de Notícias num texto arrasador e irrespondível.
É neste contexto que deve ser lido o editorial do "Público" de 27 de Maio.
Saído de um jornal com perda de audiências constantes a ponto de o acantonar ou num pretenso elitismo inconsequente ou num provincianismo sem futuro, com um director à beira de um ataque de nervos e que não teve pejo em apoiar publicamente uma das mais descaradas violações do direito internacional deste século - com tudo isto conjugado, tal editorial assume o carácter inconfundível de um requiem encomendado por uma impunidade que se vai perdendo.
Se fossemos demagógicos sugeríamos um editorial geminado subordinado ao elogio da imprensa americana e à vergonha da nossa.
Mas porque ainda nos lembramos de uma espantosa intervenção de Sousa Franco, em meados da década de noventa, quando defendia que a independência dos tribunais e a independência do jornalismo têm a mesma matriz constitucional, teremos que manter sempre aquele equilíbrio normativo que faz a grandeza das instituições a quem a sociedade confere um poder de regulação constituinte.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
É tempo de terminar; porque o colóquio que se segue é atraente que baste e o dia não é tão longo assim quanto se pensa."
Luís António Noronha Nascimento
Lisboa, 3 de Junho de 2009