“Na soleira da porta, dois homens. Um de fato e gravata,
elegante, esguio, nariz e lábios finos, pasta tecnocrata na mão. O outro mais
atarracado, carão fechado, fato-macaco, caixa de ferramentas numa senhora
manápula.
- D-desculpem, estava com a máquina de lavar, não ouvi…
Mal diz isto a mulher percebe que é mentira errada.
Da cozinha não vem barulho nenhum da máquina de lavar.
Os homens olham para a mulher como se não olhassem para a
mulher.
É estranho. Os homens não têm um ar ameaçador. Antes pelo
contrário. O de fato até parece loquaz; o outro, sim, é mais bruto, pesado,
ausente.
- Bom dia, minha senhora – diz o de fato, com o seu ar
loquaz. – Viemos para instalar o medo.
- O m-medo?...
O de fato loquaz faz uma expressão de espanto retórico:
- A senhora não foi avisada? – O homem faz uma expressão de
então com olhos.
A mulher morde o lábio:
- Tem de ser hoje? É que eu já tinha planeado…
O homem de fato loquaz, embora cordato, é firme:
- Minha senhora, o progresso não para. É pelo bem do país.
- Pois. Mas é que eu não estava prepar…
O homem de fato faz um ar desapontado:
- A senhora não me diga que é contra o bem do país.
- Eu…
- Ou contra o progresso.
- …
- Ou contra o medo.
A mulher morde o lábio:
- Não. Claro que não…"
E é isto. Um fresco do país que hoje somos e onde se instala
o medo que se insinua de forma silenciosa. Tudo numa narrativa bem imaginada,
por isso original, e muito absurda. Como absurdos são os tempos que vivemos.
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