Conheci este livro pela referência que lhe faz Rui Tavares no
seu excelente ensaio “A ironia do projeto europeu”, quando aproxima a história
do Visconde Medardo de Terralba à da Europa partida ao meio, seja pelo muro que
separava o leste do ocidente, seja pela realidade bem mais recente com a
divisão decorrente, nomeadamente, da introdução da moeda única.
Na história de Calvino, o Visconde Medardo de Terralba, logo
no início da batalha, é rachado a meio, rigorosamente a meio, pela bala de um
canhão e isto na sequência de uma atitude temerária do Visconde.
Face às baixas experimentadas do lado dos cristãos, havia
indicações para recuperar os feridos até onde fosse possível. Encontrada uma
das metades, ainda com vida, houve artes para a recuperar e conseguir Medardo
com um olho, metade da boca, um braço, uma perna. Noutro local, e por outras
pessoas, o mesmo aconteceu à outra metade.
Desconhecendo a existência uma da outra, ambas as metades
regressam a Terralba.
A metade direita, a primeira a chegar, concentra em si o que
de pior poderia haver no Visconde em crueldade e sadismo, infernizando a vida
dos seus súbditos.
A metade esquerda chega pouco tempos depois, apresentando um
Medardo virtuoso, moralista, a todos exigindo pios comportamentos, combatendo
tudo o que fosse prazer. De tal modo que os habitantes de Terralba chegavam a
preferir a metade direita, apesar das suas maldades sem fim.
Acontece que ambas as metades disputavam os amores da jovem
Pamela, situação que obrigou a um duelo entre si. Como seria de esperar numa
história destinada a acabar bem, do duelo resultam duas estocadas de alto a
baixo na zona das antigas cicatrizes de ambas as partes, o que permitiu ao
doutor Trelawney uni-las com êxito.
O Visconde era agora um homem inteiro, nem bom nem mau,
antes uma combinação de bondade e maldade, como era antes de ser rachado pela
bala de canhão.
Calvino dizia que não foi sua intenção escrever uma
alegoria moral, muito menos política. Cabe assim ao leitor retirar da história
os ensinamentos que entender.