domingo, 18 de agosto de 2013

Leituras em dia: "O Visconde Cortado ao Meio" de Italo Calvino


Conheci este livro pela referência que lhe faz Rui Tavares no seu excelente ensaio “A ironia do projeto europeu”, quando aproxima a história do Visconde Medardo de Terralba à da Europa partida ao meio, seja pelo muro que separava o leste do ocidente, seja pela realidade bem mais recente com a divisão decorrente, nomeadamente, da introdução da moeda única.
Na história de Calvino, o Visconde Medardo de Terralba, logo no início da batalha, é rachado a meio, rigorosamente a meio, pela bala de um canhão e isto na sequência de uma atitude temerária do Visconde.
Face às baixas experimentadas do lado dos cristãos, havia indicações para recuperar os feridos até onde fosse possível. Encontrada uma das metades, ainda com vida, houve artes para a recuperar e conseguir Medardo com um olho, metade da boca, um braço, uma perna. Noutro local, e por outras pessoas, o mesmo aconteceu à outra metade.
Desconhecendo a existência uma da outra, ambas as metades regressam a Terralba.
A metade direita, a primeira a chegar, concentra em si o que de pior poderia haver no Visconde em crueldade e sadismo, infernizando a vida dos seus súbditos.
A metade esquerda chega pouco tempos depois, apresentando um Medardo virtuoso, moralista, a todos exigindo pios comportamentos, combatendo tudo o que fosse prazer. De tal modo que os habitantes de Terralba chegavam a preferir a metade direita, apesar das suas maldades sem fim.
Acontece que ambas as metades disputavam os amores da jovem Pamela, situação que obrigou a um duelo entre si. Como seria de esperar numa história destinada a acabar bem, do duelo resultam duas estocadas de alto a baixo na zona das antigas cicatrizes de ambas as partes, o que permitiu ao doutor Trelawney uni-las com êxito.
O Visconde era agora um homem inteiro, nem bom nem mau, antes uma combinação de bondade e maldade, como era antes de ser rachado pela bala de canhão.
Calvino dizia que não foi sua intenção escrever uma alegoria moral, muito menos política. Cabe assim ao leitor retirar da história os ensinamentos que entender.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Toco a tua boca

"Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto.
Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela.
E há apenas um saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água."
“O Jogo do Mundo (Rayuela)”, Cap. 7 – Júlio Cortázar.

Leituras em dia: "Diego & Frida" de J.M.G. Le Clézio


Um elefante e uma pomba, disse o pai de Frida. Uma pomba que experimentou toda a solidão. Uma pomba mágica mas permanentemente torturada, pelos males físicos, e por aqueles que lhes acrescentava o elefante, com as suas permanentes traições.
Mas Diego experimentava sempre um enorme vazio quando se afastava daquela pomba prisioneira do seu corpo, senhora de uma arte com forma de animalidade.
Se para Diego a arte era sobretudo um manifesto político, para Frida a arte era uma condição de sobrevivência à ruína dos sentimentos e do corpo.
Uma vida de amor permanentemente feito drama. Até ao fim.

domingo, 11 de agosto de 2013

O que só lembra ao careca...


Quando da primeira candidatura a Sintra, Fernando Seara fez questão de se fazer referenciar pelo “careca do Benfica”, não por causa da careca, pois carecas há muitos, mas por causa do prestígio da marca que em muito o ultrapassa.
Para muitos, no entanto, Seara é o marido da Judite, o que de novo traduz a necessidade de uma referência alheia, para se saber de quem se fala quando se fala de Seara. Mas consta-se que esta referência está perdida, talvez sobrando apenas a de “o ex da Judite”.
Muito pouco, ou mesmo nada, para quem tem ego cuja alimentação daria cabo de qualquer orçamento. E daí a necessidade de, amanhã, se fosse o caso, Seara poder ser conhecido como presidente da CM de Lisboa, talvez com um cognome: o de dinossauro, destino de quem, por falta de méritos próprios, se encosta à política como profissão.
Interessa, por isso, para prevenir, conhecer o pensamento de Seara que, para que conste, gosta de referir a sua atividade de professor universitário, apesar daquilo que se segue e que poria os cabelos em pé, mesmo a um careca.
De facto, na entrevista dada ao PÚBLICO de 09-08-2013, temos estas pérolas de Seara:
Pergunta
“Quais são as principais críticas que faz à gestão de António Costa em Lisboa?”
Resposta de Seara
“A grande questão da política hoje em dia é um esquema de criticar. A minha opção é a minha forma de gestão.”
Perante a originalidade da resposta, é caso para perguntar qual a palavra da pergunta que Seara não entendeu e, por outro lado, que raio é que quis dizer com a sua resposta.
Pergunta seguinte
“Então quais são as sua principais propostas para Lisboa?”
Resposta de Seara
“Acho que os meus exemplos de Sintra… Em Lisboa há quatro ou cinco questões interessantes para suscitar. Lisboa precisa de ser uma cidade mais limpa, Lisboa precisa de ter menos buracos e crateras todo o ano. Lisboa precisa de ter um conjunto de estabilidade de trânsito, não precisas de ter grandes ruturas der trânsito. Lisboa precisa de um conjunto de apoio educativo permanente em razão das situações específicas da sociedade de Lisboa. Lisboa precisa de ter um apoio social efetivo, quer com as IPPS, quer com a Misericórdia. Tem de ter mecanismos de apoio concreto àquilo que eu chamo as necessidades sociais de uma cidade que, nalgumas freguesias, tem mais de 28% e 29% da população com mais de 65 anos, atingindo porventura daqui a 15 anos o chamado ómega equivalente a alguns bairros de Tóquio ao nível do envelhecimento e de autonomia dos idosos, principalmente realidades monoparentais. Lisboa tem que ter uma rotura em alguns aspetos da lei do solo… “
Não tendo referido o que entende por “os meus exemplos de Sintra”, Seara refere para Lisboa o que diria, quanto a outra qualquer cidade, um candidato à respetiva câmara: a limpeza, os buracos, os transportes, a educação, os apoios sociais, particularmente aos idosos, mas sem ser capaz de dizer o que faria de modo diferente. Mas uma coisa o distingue dos demais: “o chamado ómega equivalente a alguns bairros de Tóquio”. É que esta só lembraria mesmo ao careca, e nem todos são carecas.
Como entendo a Judite.
 
 
 

Sonho

À procura de sabores, naveguei-te por inteiro, lentamente, entre cheiros e calores. Agora, exausto mas saciado, acolhes-me na tua melhor enseada, numa breve calmaria, preparando novas viagens.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Perdoa a pateta, Mandela!

Rita Silva
O cão arraçado de pitbull de nome Zico atacou um bebé de 18 meses que não resistiu aos ferimentos, vindo a falecer pouco depois. Do bebé já poucos recordarão o nome, mas o Zico foi transformado quase em figura pública graças à Associação Animal e a uma menina que também quer ser figura pública, nem que para tal tenha que fazer tristes figuras, ao nível da pura idiotia.
Zico deveria ser abatido nos termos da lei mas, de acordo com a parvoeira da menina da foto, “Um cão que nunca fez mal durante oito anos e atacou é porque teve algum motivo”. Ao pé de tal parvalhona, o Zico parece, de facto, gente.
A Animal tem agora ao seu cuidado, de forma provisória, o Zico que, de acordo com os usos da casa, vai ser rebatizado, fazer um check-up geral e poderá mesmo ter ao seu dispor os serviços de comportamentalista animal e de uma especialista em recuperação de animais agressores.
E qual o novo nome para Zico? Nada mais que Mandela porque, ainda de acordo com uma parvalhona que não se enxerga “tal como o líder sul-africano este cão também é um símbolo da liberdade. Esteve preso sete meses sem saber porquê, tal como Mandela esteve preso mais de duas décadas.”
A tal parvalhona há que lembrar que Mandela sabe por que esteve preso e nós também o sabemos, e que Mandela só não teria dó de uma pobre pateta, porque é grande.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Antes uma pomba, um ramo de oliveira...

Há guerras justas – contra um invasor estrangeiro, por exemplo – e injustas, como foi a que o regime fascista português conduziu de 61 a 74 nas suas ex-colónias. As primeiras, nunca as outras, têm, por isso, a seu favor, a adesão generalizada dos povos, a par do direito internacional.
Quanto a uma guerra injusta faz todo o sentido recordar ou comemorar o que lhe ponha termo e, sobretudo, recordar e apoiar os que dela foram vítimas: os seus mortos, os portadores de deficiências por ela causadas. Sobretudo porque foram vítimas inocentes de uma causa que, em geral, nunca abraçariam.
Esta iniciativa poderia justificar-se em razão da preservação da memória dos mortos, fosse quem fosse que a concretizasse: os camaradas sobrevivos ou a vila de Loriga através da sua autarquia, por exemplo.
Mas o que temos é um monumento ”aos nossos combatentes do ultramar”, ficando a ideia de se tratar de uma iniciativa da Vila de Loriga que, a ser assim, não cuidou de uma específica e devida evocação ou referência aos mortos.
De qualquer modo, e por mais original que se seja a argumentar a seu favor, a G3, com o destaque que lhe foi dado e como que a esmagar ou a dominar o mapa de África, dá um ar agressivo, diria militarista, ao conjunto. Eu preferiria a pomba ou o ramo de oliveira, a simbolizar a paz.

domingo, 4 de agosto de 2013

Um cronista rasca

Eu chamo: parvalhão

É conhecido o episódio em que Marcelo escreveu e o Expresso reproduziu que “Balsemão é lelé da cuca”. E veio-me isto à memória ao ler o inteligente Henrique Monteiro porque, aqui sim, ter chegado a diretor do Expresso só mesmo porque Balsemão, num qualquer momento, estava bem lelé da cuca.
De facto, só um inteligente fala-barato, sempre com argumentação tão rasca que não ocorre ao careca, é capaz de coisas como esta, no Expresso de 3 de Agosto.
Monteiro, qual historiador encartado, começa por lembrar que em tempos idos havia quem recorresse à Inquisição, à PIDE ou ao KGB, para denunciar quem se desviasse do pensamento oficial.
E para quê este recuo a tempos idos? Pois para comparar os denunciantes daquelas épocas a quem hoje, nas redes sociais, fez eco das declarações da tia da linha que costuma brincar aos pobrezinhos numa herdade da Comporta.
Para que não se pense que estou a fazer uma abusiva interpretação do que escreveu esta luminária, fica isto:
“Não havendo Inquisição, nem PIDE, nem KGB, recorre-se agora às redes sociais e à própria comunicação social para fazer o que é possível: assassínios de caráter.” E acrescenta: “É verdade, a natureza humana não muda, apenas os modos de fazer se alteram. A liberdade de expressão ainda é entendida como a possibilidade de o outro dizer o que cada um gosta. Quando tal não acontece, quando se sai da cartilha, há uma alcateia de lobos disposta a trucidar o incauto. Fazem-no em nome de um princípio, de uma ideia, de uma verdade, e acham que esses nobres fins justificam a ação. Mas não era isso, palavra por palavra, que diziam inquisidores, fascista e comunistas? Pois era…”
Parece que fala quem sabe da poda. De qualquer modo, o tom moralista e o pendor censório assentam como uma luva a Monteiro.
E pagam a quem não tem nada para dizer?

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Malhar o corpo - Recomeço

Há anos, ao preencher a ficha, o instrutor – no meu ginásio não há essa mariquice de personal trainer – estranhou que não tivesse sinalizado, como uma das finalidades da minha inscrição, a perda de peso. Respondi-lhe então que o principal objetivo era poder sentir-me em forma para manter vícios, entre os quais o de comer, beber e fumar. Digamos que malhar o corpo – duas horas por dia, de segunda a sábado, entre cardio fitness e musculação – era o modo de encontrar um equilíbrio certo entre aqueles prazeres e o prazer de cuidar do corpo, mesmo que doesse.
Tenho por mim que isso me valeu de alguma coisa na crise de 2011. Mas desta vez, preenchendo nova ficha, registei como objetivo perder peso, pois passaram dois anos sem prática desportiva ou de ginásio, e isso “dói”.
Vamos recomeçar com calma, sugeriu o instrutor que é quem sabe. Mas eu fixei uma regra: duas horas por dia, de segunda a sábado. E lá me definiu o programa das festas que, no mês de agosto, só irão até ao dia dez, por causa das férias do pessoal…
Já cá cantam as primeiras duas horas. Daqui a pouco saberei onde é que não me dói.
É a vida!