sábado, 30 de junho de 2012

Sonata


Sem batuta, sem maestro. De improviso. Com uma abertura de aromas, no silêncio das vozes. Seguindo uma partitura pegada, no seu início, de apassionatos, andamentos lentos, cadência ritmada. Compasso binário.
Uma melodia a quatro mãos. Dedilhando nos corpos em que identificamos claves e pautas, bemóis e sustenidos, agudos e graves. Quais caixas de ressonância. Que de facto são.
Mergulhamos nas variações e inventamos arranjos, novos acordes, suscitamos diferentes acústicas. Sempre com bis no final de cada refrão. Prolongado a coda de cada andamento.
E prosseguimos em crescendos, recusando calar os agudos e os graves, numa escala que já não dominamos. Numa fantasia em que fica à prova o nosso virtuosismo.
Em tudo a sintonia entre o desejo e a emoção. Até desaguarmos num aleggro maestoso, corpos exaustos, mas nunca rendidos.

Que fazer com um segundo a mais na vida?


Face à redução da velocidade de rotação da terra, a noite que aí vem vai ter mais um segundo ou, de outro modo dito, vamos ter um minuto com 61 segundos.
E penso, penso e penso sobre como ocupar mais um segundo da minha vida, que nem sequer dá para acertar o relógio em conformidade. E isto é que me é prioritário: estar certo, em qualquer momento, até ao segundo. Rigorosamente. Mas vou gastar mais que um segundo, isso vou.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Leituras em dia : "A Ronda" de Arthur Schnitzler


Quando o judeu austríaco Arthur Schnitzler escreveu “A Ronda”, ainda se não associava judeu a um estado bélico e confessional, mas eram escandalosamente pornográficos diálogos no contexto da intimidade de homem e mulher, parece que pelo mero facto de se estar perante relações clandestinas, não ungidas pelo sagrado casamento.
Era bem hipócrita a Viena de então, onde o livro circulava às escondidas desde 1905 mas cuja peça apenas subiu à cena em 1921, com grande escândalo.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Prateleiras e botões - Júlia ganha ao MEC


Hoje, no Público, MEC lamenta que se chame prateleira, que lhe fará lembrar pratos, a algo em que se arrumam livros. E estante também lhe não serve como termo adequado, sobretudo se for “estante para livros”. Mas não nos deixa saída para isto, o que me leva a afirmar que perde para a personagem Júlia, senhora da ousadia daqueles que por vezes temos por meros ignorantes, ou iletrados. Gente simples. De facto, perante a dificuldade em perceber por que se chamava botão ao botão, Júlia, que também usava prateleiras mas para as fazendas, não esteve com meias medidas, como decorre do texto: botão passou a morador, porque entra nas casas. E ponto final.

“Júlia tomou conta de um quartinho de mantimentos do armazém, botou máquina, prateleiras com as fazendas, caixas de papelão com botões que ela escreveu “moradores” do lado de fora.
- Moradores – leu Ludéria.
- Essa roela existe pra entrar nas casas, não é? Moradores.
Moradores de pérola, moradores transparentes, moradores de avental, moradores de uniforme escolar, vermelhos, brancos, pretos, toda cor e bitola.”
In “os MALAQUIAS” de Andréa del Fuego – Prémio Literário José Saramago 2011

domingo, 24 de junho de 2012

Leituras em dia: "os MALAQUIAS" de Andréa del Fuego


“O coração do casal fazia a sístole, momento em que a aorta se fecha. Com a vida contraída, a descarga não pôde atravessá-los e aterrar-se. Na passagem do raio, o pai e a mãe inspiraram, o músculo cardíaco recebeu o abalo sem escoamento. O clarão aqueceu o sangue em níveis solares e pôs-se a queimar toda a árvore circulatória. Um incêndio interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e Adolfo.
Nas crianças, nos três, o coração fazia a diástole, a via expressa estava aberta. O vaso dilatado não perturbou o curso da eletricidade e o raio seguiu pelo funil da aorta. Sem afetar o órgão, os três tiveram queimaduras ínfimas, imperceptíveis.”

E é com esta bem original e poética maneira de descrever o efeito de um raio que começa a história dos três irmãos Malaquias: esturricados os pais, ei-los a caminho dos seus destinos, num relato áspero mas de grande criatividade e que faz apelo às emoções, ao deslumbramento.

Por isso é estimulante a leitura do livro da brasileira Andréa del Fuego, Prémio Literário José Saramago 2011.

sábado, 23 de junho de 2012

sms


- Eu vim apenas ver o jogo… o gajo ali que se dane que eu não quero confusões e espero bem que o sms não seja para mim - pensa o Pantera Negra.
- Este tipo aqui ao lado ainda me vai lixar. É menino para me pedir que testemunhe que apenas recebeu mas não respondeu aos sms do Silva Carvalho. E eu que vim apenas ver o jogo… Avisado é o Pantera, a fingir que não o vê.
- O Silva Carvalho deve saber qual vai ser o resultado e não me diz nada… ou estará ofendido por ter dito que não ligava aos seus sms?