A vida não prescinde do reviver de
factos passados, sem que nos reste, infelizmente, mais que rebobinar a memória
que deles temos e, com isso, colarmo-nos a uma saudade que muitas vezes dói. Ao
fazê-lo agora, para fora de mim, presto tributo a quem bem merece esta dolorosa
contrapartida: a confissão de fraquezas muito tardiamente assumidas e, assim, uma confissão
sem direito a perdão. Porque assumo que há coisas sem direito a perdão.
Na sua “Ideia de Europa”, George
Steiner escreve “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da
cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados por
gangsters de Isaac Babel” e, mais adiante “Quem desejasse conhecer Freud ou
Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia perfeitamente em que café procurar, a que
Stammtisch tomar lugar. Danton e Bobespierre encontraram-se uma última vez no
Procope. Quando as luzes se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurés foi
assassinado num café. Num café de Genebra, Lenine escreveu o seu tratado sobre
o empiriocriticismo e jogou xadrez com Trotsky.”
Eu sempre gostei de cafés, de
estudar em cafés, de fazer pausa em cafés, lendo ou conversando. Sempre incapaz
de aguentar apenas estar, sem nada que me ocupe. Por isso, em geral, tenho
que ler, seja o que for, a menos que se trate de entrar para… sair de
seguida.
E era assim também naquele café. Entrava,
sacava de algo para ler, até que a partir de certa altura comecei a saltar
linhas, a recomeçar a leitura, disfarçadamente atento a entradas e saídas e,
entre umas e outras, aos olhares que começámos a cruzar. E, tendo-me habituado
a isso, doíam as ausências e passaram a ser muito longos os fins de semana. Mas
bastavam-me os olhares, que estes se mantivessem…
E comecei a ir ao café agora para
te ver ou para penar a ausência de uns olhos negros, risonhos e malandros, quase
escondidos por cabelo azeviche e rodeados de uma pele bem morena, tudo formando
um delicioso conjunto exótico, que me deixava confuso e me obrigava a olhar
para trás e para os lados para me garantir que era eu quem tu, feiticeira,
querias… hipnotizar. No entanto, mesmo somando às cenas de café as espreitadelas
a partir de uma janela que começou a estar aberta a certas horas, eu hesitava,
não acreditava, pois tudo poderia ser mera coincidência. Aquilo não me poderia
estar a acontecer, apenas por o ter por excessivo.
Depois de jantar o café tinha uma
bem mais reduzida afluência e quase juro que foi por mero acaso que uma noite
reparaste que também nessa altura do dia por lá parava. E um dia desconcertaste-me
quando, com tanta mesa disponível, escolheste uma junto à minha e, uma
eternidade de segundos depois, me perguntas se podias ler um suplemento do
jornal – era O Jornal – que tinha de lado. Juro que eu disse que sim, pois que
poderia ter dito? Mas a partir daí não sei reproduzir a conversa, certamente
com gaguejares da minha parte.
Ficaste a então a saber que me
ausentava nos fins de semana e perguntaste se me poderias esperar no regresso, logo
no imediato fim de semana. E que vivo tenho o retrato de quem, sentada num
banco da estação, livro sobre os joelhos, me aguardava. Era tudo demais para
mim.
Foi este o início da coisa mais
bonita que me aconteceu e que eu soube estragar uns tempos depois. Com danos
apenas do teu lado, na altura. Dos meus queixei-me mais tarde, bem amargamente.
Tudo quando, definitivamente, uma
luz se apagou na janela, a quinta a contar da direita, que dava para o Saban que, reparei então, passou a um Sá
Bank. Estavam perdidos os locais de encanto que insistiram, no entanto, em ficar a atormentar-me com
a memória que deles guardei. Até hoje.
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