Duas novelas com registo de natureza histórico, mas onde
tudo é inventado, desde os locais às personagens, num ambiente de opereta onde, por isso,
não faltam fardas e títulos, notários, taberneiros e gente de má vida, se é que
existe má vida.
Numa intemporalidade que bem nos pode conduzir a qualquer
época, mesmo a de agora, apesar de um varandim transformado em plateia, acessível
na condição bilhete pago ou convite na mão, para assistir ao enforcamento de
uns malvados anarquistas, a quem antes ocorreu dar cabo do grão-duque, e de uma
insólita fugida para o mar da população de Carvangel na expectativa do embarque
no nunca visto, mas sempre pressentido, navio Maria Speranza, com o fim que se
advinha: de novo uns anarquistas ou aparentados a fazerem da fuga para o mar
uma viagem sem regresso. Para parte alguma.
Mas, apesar do ambiente trágico, sempre a fina ironia de
Mário de Carvalho, seja na descrição das situações relatadas, seja nas pinceladas
que dá sobre os seus personagens, uma galeria de gozo e arrepio.
“Enquanto o casal se afastava, sempre com algum espalhafato,
Rossélio observou com minúcia o interior de uma taberna que tinha à porta uma
tabuleta com grosseiras letras de zarcão pintadas sobre fundo negro: A
Verdadeira Perna de Pau.
No interior, em volta de bitáculas ou cabrestantes sem
varas, sentavam-se fregueses que apoiavam nos joelhos ou nas cadeiras as pernas
de pau de diversos feitios e tamanhos que um criado lhes servia, e bebiam pelo
côncavo do encaixe. Dois jovens vieram cá para fora e sentaram-se, saboreando
uma bebida esverdeada que reluzia na concavidade.
- De facto, não é mau – disse um deles. – Dá uns ares a rum.
Mas ninguém me convence que estas pernas de pau tenham pertencido a autênticos
piratas.
- Porque não? – respondeu o outro.
- Não há piratas suficientes. Mesmo que houve, nem todos têm
perna de pau.
- Eis um argumento que, embora manifestamente engenhoso, não
colhe, porque não considera as populações de Shandenoor, Ashitueba, Matrashoba,
Kimdemóvia, Bao e Belterochstein, e a percentagem elevadíssima de piratas
nessas áreas.
- Ainda assim.
Mas o taberneiro aparecia à porta e intervinha na discussão
com tanto mais entusiasmo quanto adivinhava – sem sequer olhar para o notário –
o disfarçado interesse de Rossélio pelo tema.
- É preciso não esquecer – disse – que o bei de Orballah
propunha a cada pirata capturado uma alternativa: ou o corte de uma perna ou o
corte da cabeça e, pelo menos setenta por cento, por qualquer razão, optava
pela primeira hipótese.
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