terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Ontem, um dia muito negro.


Não é preciso ser cronista do reino para afirmar de forma solene que ontem as academias portuguesas tiveram um dia negro, um histórico dia negro, num programa da RTP1. Qual juventude universitária solidária, inclusiva, politicamente atrevida, qual quê. Para aquilo que eram os valores de antigamente já deu o que tinha a dar. Agora temos uma reprodução da “geração rasca”, mas para muito pior que aquilo que levou Vicente Jorge Silva a integrar aquela expressão no nosso léxico.
Era ver aquele teatro, de outras boas tradições, quase lotado por uma canalha intolerante que não aceita a diferença de opinião, que se basta com o carnavalesco traje académico, que aceita ter como referência um calão com 24 anos de matrículas e um presidente da sua AAC sem coragem para ter opinião sobre a praxe com o pretexto anedótico de não querer ser polícia e que se recusa a comentar os códigos da praxe que legitimam a humilhação e a agressão dos caloiros, assim como a recusa do exercício do direito de objeção às práticas canalhas, porque não quer entrar em jogo. Com um original argumento: é presidente de todos, logo toda a merdice, mesmo que apenas de alguns, faz sentido. Ele não é polícia, argumento de quem não sabe mais, de quem não os tem no sítio.
Ainda do lado dos adeptos das praxes, como foi penoso ver um professor de direito, populista e demagogo, argumentar que não basta que se chame de praxe a uma coisa para que a coisa seja praxe, ele que por experiência sabe que, a tudo quanto foi denunciado, os estudantes chamam mesmo praxe, isto é, a praxe é mesmo aquilo: a humilhação, a agressão a diversos níveis, o argumento da autoridade entre pessoas que se deveriam ter por iguais, e tudo isto a pretexto da integração daqueles que chegam às universidades pela primeira vez.
A televisão permite isto: exibir a todos uma realidade, uma medonha e triste realidade.
Sou, felizmente, do tempo em que não havia praxes por Lisboa. Nem trajes, nem queimas das fitas ou outros carnavais, salvo aquilo a que se chamava viagens de finalistas, um prémio. Sou do tempo em que ser trabalhador estudante não tinha qualquer proteção legal, pelo que tinha que compensar no emprego todo o tempo gasto com aulas ou exames, com ausências sempre sujeitas a autorizações prévias, com os dias de férias no trabalho gastos na preparação de exames. Sou do tempo em que eram escassos os apoios sociais, desde bolsas a residências universitárias. Por tudo isto não havia dinheiros para trajes e outros carnavais. Mas sou do tempo em que algumas academias, particularmente a de Coimbra, fazia abanar o regime, com riscos para os corajosos, desde a antecipada incorporação militar na altura das guerras coloniais, às expulsões e mesmo a prisões. Assim como sou do tempo de iniciativas solidárias dos estudantes da academia de Lisboa aquando das cheias em que gente sem nada perdeu a vida e haveres nas localidades ribeirinhas do Tejo.
E também sou do tempo da coragem do Alberto Martins na inauguração do Edifício das Matemáticas em Coimbra e que o atual presidente da AAC trouxe à baila naquele debate como se de uma praxe se tratasse, como o fez quanto às serenatas.
Sou do tempo em que era inimaginável que as cervejeiras se atrevessem a investir nas nossas bebedeiras através de patrocínios celebrados com as associações académicas.
Eram outros tempos e outras gentes. Agora, as gerações tidas por mais bem preparadas, apostam na rasquice comportamental, noutros bem diferentes valores. E já chegaram ao poder. E isso é que nos trama e continuará a tramar a vida. E isto basta para que não possa haver qualquer tolerância com os desmandos das praxes.

1 comentário:

lino disse...

Fui-me deitar quando deram a palavra ao patego que lá anda há 24 anos a gozar com o nosso dinheiro.
Abraço