quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Saban e Sá Bank

A vida não prescinde do reviver de factos passados, sem que nos reste, infelizmente, mais que rebobinar a memória que deles temos e, com isso, colarmo-nos a uma saudade que muitas vezes dói. Ao fazê-lo agora, para fora de mim, presto tributo a quem bem merece esta dolorosa contrapartida: a confissão de fraquezas muito tardiamente assumidas e, assim, uma confissão sem direito a perdão. Porque assumo que há coisas sem direito a perdão.
Na sua “Ideia de Europa”, George Steiner escreve “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados por gangsters de Isaac Babel” e, mais adiante “Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia perfeitamente em que café procurar, a que Stammtisch tomar lugar. Danton e Bobespierre encontraram-se uma última vez no Procope. Quando as luzes se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurés foi assassinado num café. Num café de Genebra, Lenine escreveu o seu tratado sobre o empiriocriticismo e jogou xadrez com Trotsky.”
Eu sempre gostei de cafés, de estudar em cafés, de fazer pausa em cafés, lendo ou conversando. Sempre incapaz de aguentar apenas estar, sem nada que me ocupe. Por isso, em geral, tenho que ler, seja o que for, a menos que se trate de entrar para… sair de seguida.
E era assim também naquele café. Entrava, sacava de algo para ler, até que a partir de certa altura comecei a saltar linhas, a recomeçar a leitura, disfarçadamente atento a entradas e saídas e, entre umas e outras, aos olhares que começámos a cruzar. E, tendo-me habituado a isso, doíam as ausências e passaram a ser muito longos os fins de semana. Mas bastavam-me os olhares, que estes se mantivessem…
E comecei a ir ao café agora para te ver ou para penar a ausência de uns olhos negros, risonhos e malandros, quase escondidos por cabelo azeviche e rodeados de uma pele bem morena, tudo formando um delicioso conjunto exótico, que me deixava confuso e me obrigava a olhar para trás e para os lados para me garantir que era eu quem tu, feiticeira, querias… hipnotizar. No entanto, mesmo somando às cenas de café as espreitadelas a partir de uma janela que começou a estar aberta a certas horas, eu hesitava, não acreditava, pois tudo poderia ser mera coincidência. Aquilo não me poderia estar a acontecer, apenas por o ter por excessivo.
Depois de jantar o café tinha uma bem mais reduzida afluência e quase juro que foi por mero acaso que uma noite reparaste que também nessa altura do dia por lá parava. E um dia desconcertaste-me quando, com tanta mesa disponível, escolheste uma junto à minha e, uma eternidade de segundos depois, me perguntas se podias ler um suplemento do jornal – era O Jornal – que tinha de lado. Juro que eu disse que sim, pois que poderia ter dito? Mas a partir daí não sei reproduzir a conversa, certamente com gaguejares da minha parte.
Ficaste a então a saber que me ausentava nos fins de semana e perguntaste se me poderias esperar no regresso, logo no imediato fim de semana. E que vivo tenho o retrato de quem, sentada num banco da estação, livro sobre os joelhos, me aguardava. Era tudo demais para mim.
Foi este o início da coisa mais bonita que me aconteceu e que eu soube estragar uns tempos depois. Com danos apenas do teu lado, na altura. Dos meus queixei-me mais tarde, bem amargamente.
Tudo quando, definitivamente, uma luz se apagou na janela, a quinta a contar da direita, que dava para o Saban que, reparei então, passou a um Sá Bank. Estavam perdidos os locais de encanto que insistiram, no entanto, em ficar a atormentar-me com a memória que deles guardei. Até hoje.

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