Falar sem dizer nada
Editorial - DN de 30 Setembro 2009
"O Presidente da República, Cavaco Silva, falou ontem ao País. Não esclareceu nada do que era essencial esclarecer (se desconfia ou não de que a Presidência andou a ser "espiada" por elementos do gabinete de José Sócrates, como o Público noticiou no passado dia 18 de Agosto) e atirou mais lenha para a fogueira da guerra política com "o partido do Governo".
Cavaco Silva resguardou-se no simbolismo do seu cargo para ser ambíguo no que era importante e até fazer demagogia.
A ambiguidade esteve na forma como disse que não se revia nas informações passadas por Fernando Lima. "Só o Presidente fala em nome dele", afirmou, relembrando o carácter unipessoal do seu cargo. Cavaco Silva não foi capaz de ser directo (quanto à matéria de facto), não esclareceu se o assessor continua ou não a trabalhar em Belém (apenas reconheceu "alterações na Casa Civil"), e até informou os portugueses de que acha normal que um trabalhador do Palácio de Belém não só se interrogue em público (e na qualidade de membro da Casa Civil, permitindo esta atribuição), em conversa com um jornalista, sobre qualquer matéria, como até aponte actos ilícitos ao gabinete do primeiro-ministro! "Onde está o crime?", perguntou um indignado Cavaco Silva. Ou seja, uma insensatez que não seria perdoada em qualquer democracia mundial, em Portugal é não só possível como pode ser vista como um direito de cidadania. Absolutamente inesperado.
A demagogia esteve à vista no caso do e-mail, há poucos dias divulgado pelo Diário de Notícias. Primeiro disse que tinha dúvidas quanto à veracidade das afirmações nele contidas (coisa que só Fernando Lima e o jornalista do Público podem um dia esclarecer, se quiserem) e a seguir serviu-se desse mesmo e-mail para falar da segurança das comunicações na Presidência. Como se uma coisa tivesse a ver com a outra! É lamentável que o mais alto magistrado da Nação possa atrever-se a tentar jogar com a possível ignorância das pessoas, quanto ao processo ou quanto aos saberes, para fazer valer as suas necessidades políticas. Ou seja, quando se esperava, por declarações recentes, que o PR estivesse preocupado com questões importantes de Estado, ligadas a eventuais escutas ou, pelo menos, de coordenação do SIRP e do trabalho do secretário-geral de Segurança Interna, Cavaco Silva mostrou precisar de um antivírus no seu computador. Se o problema era esse, o informático deveria ter sido chamado há mais tempo, e não só ontem, sem dúvida, para lhe resolver "as vulnerabilidades" na máquina que motivaram o irónico fim da reacção oficial do PS, lida por Pedro Silva Pereira.
Não há memória de um discurso tão pobre de um Presidente da República Portuguesa.
Cavaco Silva fez o pleno das críticas logo a seguir em todos os canais de televisão e fragilizou-se ainda mais. Bem pode dizer que "Portugal está primeiro" e tentar justificar-se que não consegue iludir o essencial: esta polémica resulta apenas de o PR não ser capaz de desfazer sem tibiezas nem artifícios um problema montado por um dos seus assessores que depois mudou de lugar, mas não foi deixado cair. Isso está à vista de toda a gente.
Nesta conjuntura, com um Governo provavelmente minoritário e um PR em crise de credibilidade, incapaz de assumir os erros, Portugal não está bem. José Sócrates ficou com uma enorme vantagem de capital pessoal e político para gerir no imediato sem o contraponto que um Presidente de todos os portugueses poderia, e deveria, estabelecer. Cavaco Silva vai perceber isso nos dois anos que lhe restam de mandato. E, entretanto, também vai ter de pensar se tem condições para se recandidatar."